A população da Região Serrana, após duas semanas de anormalidade, de exceção, passa a enfrentar o desafiador recomeçar. A primeira exceção ficou por conta do encontro fatal entre um evento extremo da natureza, chuva em quantidade acima do normal e concentrada, e cidades mal planejadas e mal gerenciadas, resultando em centenas de mortes. A outra exceção ficou por conta do contato da região com a efetiva e significativa presença do poder público estadual. Sim, exceção. Aquele encontro entre a população e o aparato do poder público estadual, o “abraço institucional” que atende, assiste, ordena, incentiva, fomenta, regula e democratiza não é regra, é exceção. Ironicamente falando, aquele é um “governo estadual de exceção”.
O “governo estadual de regra”, o poder público com o qual estamos acostumados, é o que há tempos promove a experiência desumana que aceitamos sem reagir: a do abandono institucionalizado. Poder público que marca pela ausência, imperícia, negligência e incompetência de muitas das pessoas investidas nos cargos ou que ocupam funções que dizem respeito a atribuições, responsabilidades e competências governamentais.
Neste caso, merecem destaque os governadores e deputados estaduais, principais responsáveis pelo desmonte e desqualificação dos diversos órgãos estaduais que responderiam pelo “abraço institucional estadual”, o abraço que certamente diminuiria e muito os riscos de que eventos como estes da região serrana aconteçam. O abraço que não deixaria acontecer as misérias que os jornais e rádios noticiam todos os dias. Estes políticos desmontaram e desqualificaram os órgãos estaduais por meio do loteamento dos cargos, das contratações oportunistas através de cooperativas, dos salários baixos, da carreira desmotivadora, dos concursos e concorrências fraudulentos, da falta de treinamento, do fornecimento de material de baixa qualidade etc. Uns chamam isso “Choque de Gestão”.
Em seu recomeçar, a Região Serrana já começou a experimentar “o governo de regra” e ficam as expectativas com algumas conseqüências de decisões tomadas no “governo de exceção”. Com relação a regra, a mídia começou a dar destaque, no último final de semana, para a saída do aparato que foi montado após a tragédia. Entre outras coisas, relatou-se que não há assistentes sociais e psicólogos oferecendo atendimento em uma freqüência que auxilie as pessoas a enfrentarem os dramas do recomeçar. Muitos simplesmente perderam tudo, materialmente e simbolicamente falando. Já são relatados problemas de aumento do consumo de álcool. Imaginem o que significa recomeçar sem apoio depois de uma perda dessa!
As expectativas com as decisões tomadas no "governo de exceção" relacionam-se a criação, por exemplo, de um condomínio em uma fazenda, fato que criará um novo bairro. As pessoas vão entrar em contato com a capacidade e experiência do poder público estadual para fazer política de e para promover a ocupação do espaço urbano.
O mesmo poder público que deixou que as ocupações irregulares do solo urbano proliferassem. O mesmo poder público que criou Vila Aliança, Vila Kenedy, Cidade de Deus e Nova Sepetiba. Por exemplo, se for aplicada naquela região a visão que norteou a criação de Nova Sepetiba, as pessoas ficarão em um conjunto residencial com casas pequenas e espremidas, sem arborização, e bem longe das atividades que compõem a vida delas. Experiências como a de Nova Sepetiba mostram o que significa despejar pessoas nas periferias, sem oferecer qualquer política de criação e fomento de atividades que evitem o sacrificante deslocamento de horas em meios de transporte com péssimo nível de serviço. Essas experiências mostram o que significa ficar em abandono institucional, exposto a regra do possível, sem a presença do poder público que atende, assiste, ordena, incentiva, fomenta, regula, humaniza e democratiza.
As pessoas vão conhecer o “governo de regra”, o mesmo que deixou que a siderúrgica CSA se instalasse onde se instalou, sem que houvesse qualquer projeto para transformação urbanística daquela região, uma das mais abandonadas da cidade carioca. É o poder público que agora ameaça punir a empresa, como se não tivesse havido tempo e recursos para prever e evitar o que tem acontecido. É o poder público que aceita como normal a aplicação de bilhões de reais para demolir parte da Perimetral, enquanto moradores da periferia da cidade enfrentam péssimas condições para habitar.
É o mesmo “governo de regra” que disse sim para instalação do Aterro Sanitário em Seropédica, apesar de todas as considerações feitas pelos professores da UFRuralRJ, pesquisadores da Embrapa e pelo CREA com relação a problemas no EIA-RIMA. O caso de Seropédica mostra para as vitimas da Região Serrana e para todos nós, vítimas ou não, como que o poder público estadual entende a relação centro-periferia. Pelo que parece, eles agora vão para a periferia.