Recentemente um jornal exibiu a foto de um caminhão da UFRuralRJ despejando no lixão de Seropédica. O texto, criticando a ação, alardeava a universidade como um dos principais atores na luta contra a instalação do Aterro de Seropédica.
O jornal errou. A UFRuralRJ, enquanto organização, teve um papel menor em todo esse processo de transformação de Seropédica em Lixolândia, a lixeira da cidade do Rio de Janeiro . A luta mesmo ficou por conta da ADUR (Associação dos Docentes), Sintur (Sindicato dos Técnicos Administrativos), DCE (Diretório Central dos Estudantes) e alguns professores.
A foto oferece outra contribuição: começar a olhar a UFRuralRJ enquanto cidade e sua contribuição para transformação de Seropédica. Está é uma situação única: é uma organização, uma Instituição Federal de Ensino Superior (IFES) e, devido ao seu porte, uma cidade com milhares de habitantes. Enquanto cidade, a UFRuralRJ apresenta características que a diferencia, mas que não a torna imune ao ocaso enfrentado pela cidade que a hospeda. Em alguns pontos, como no caso do lixo, as semelhanças entre as cidades mostram que é necessário uma nova agenda para esse encontro.
Passado. Presente. E o futuro?
Apesar de centenária e de ser uma cidade baseada na produção e compartilhamento de conhecimento, é tímida a contribuição da UFRuralRJ para fazer com que Seropédica fuja do destino de ser mais uma cidade na zona de sacrifício do Rio de Janeiro. Desde a sua emancipação, em 1996, Seropédica carece de uma proposição efetiva da UFRuralRJ para direcionamento de esforços de pesquisas, transmissão estruturada de conhecimento ou criação de projetos para fomento de desenvolvimento social e econômico. Uma espera que se mostra complicada, pois, se aumentado o escopo da análise, vê-se que a UFRuralRJ passou ao largo de todo processo de transformação econômica, social e territorial que experimenta a região como um todo. Itaguaí, por exemplo, é atualmente um dos maiores pólos logísticos do Brasil. E qual competência, capacitações e recursos a UFRuralRJ procurou desenvolver nesta área, logística, nos últimos anos? Quantas disciplinas nesta área ela tem?
Existem mais evidências sobre os desdobramentos dessa relação na qual uma cidade sedia uma cidade universitária, mas o lixo, pelo contexto da criação do CTR Santa Rosa, chama muita atenção. Do ponto de vista teórico, sediar uma universidade do porte da UFRuralRJ é algo extraordinário, pois a presença dessas instituições é normalmente associada a expectativas de transformação da geografia social e econômica de uma região ou a materialização da imagem do conhecimento como alavanca para o desenvolvimento. Entretanto, no plano prático, o encontro entre Seropédica e a UFRuralRJ dá-se sem qualquer planejamento, o que impede que o melhor dessa proximidade seja aproveitado. Por exemplo, a prefeitura de Seropédica poderia lutar pela criação de um pólo de tecnologia baseado nas capacitações de pesquisa da UFRuralRJ. É mais inteligente e benéfico para uma sociedade ter empresas de base tecnológica do que receber um mega-aterro de lixo. O problema é que ainda são escassas as iniciativas ou oportunidades que sugiram que esse encontro será estruturalmente abordado, ao invés de pontualmente mencionado por ambas as partes quando lhes é conveniente.
Fronteiras abertas
São duas cidades bem diferentes e que parecem viver isoladas. Há tempos ouve-se tomadores de decisão das duas cidades falar em muros que separariam as cidades. A figura de linguagem usada para abordar a baixa qualidade de interação e relacionamento, os muros, não impede que se perceba que os sintomas mais se aproximam de miopia administrativa. Então, posto que uma nova agenda de interação e relacionamento clama atenção, mudar as lentes ou os óculos constitui uma figura de linguagem mais apropriada. Por exemplo, desde que foi criada, a ciclovia que liga o km 49 a UFRuralRJ não tem qualquer sinalização ou controle que torne o deslocamento por ela algo mais seguro, ordenado. Se não prestar muita atenção, qualquer pessoa que ali transita está exposta a um acidente, seja pelo tráfego de motocicletas ou ciclistas em alta velocidade.
É fato: a ciclovia está lá, mas nunca recebeu qualquer atenção estratégica ou algo que demonstre que o seu funcionamento está associado a metas específicas de ambas as cidades: meta de gestão da mobilidade, de política pública e de promoção da saúde da população, de incentivo para que a população de Seropédica se aproprie daquele gracioso espaço ou de conscientização sobre uso racional de energia ou sobre a questão da sustentabilidade. Nada acontece. É apenas uma ciclovia que um dia colocaram ali. Enquanto isso, a principal ligação entre as duas cidades continua sendo a rodovia Rio-São Paulo, fato que expõe, e de maneira desnecessária, um deslocamento do tipo doméstico, com veículos leves e pequenos, ao carregado deslocamento de cargas e pessoas em carretas, caminhões e ônibus rodoviários, isso em uma rodovia precisando urgentemente de aumento da sua capacidade. Realidade clara, objetiva, fácil de ser alcançada a olhos nus.
A fronteira há muito está aberta. A UFRuralRJ exerce inegável influência sobre Seropédica, mas no nível imediato, na dimensão econômica relativa ao consumo em lojas, serviços de alimentação e alugueis. É algo significativo, basta perguntar ao setor de comércio. O perfil de compra e consumo da população da UFRuralRJ é bem diferente do morador fixo de Seropédica. Este compraria, geralmente, em base mensal. Aquele faz compra semanal, objetivando a reposição de viveres que lhes satisfaça por, pelo menos, quatro dias na semana, contando que na sexta ele, se residente por perto, desloca-se para sua residência de origem. Sem essa demanda, boa parte do comércio local teria problemas de fluxo de caixa. Mas essa influencia econômica tem também seus reflexos negativos, como será visto mais a frente.
Diferenças entre as cidades
A UFRuralRJ, apesar do seu site não dar detalhes da sua população, tem altos índices sociais, culturais e econômicos. Ouve-se falar em quase 15000 pessoas, sendo que 75% seriam de estudantes. Da maior parte de sua população, os discentes, o menor nível educacional seria presumidamente o primeiro ano do segundo-grau, o do CTUR, Colégio Técnico. Ela apresenta algumas características básicas: ter um padrão de uso do solo amarrado ao fato de ser patrimônio cultural; ser um centro de captação de recursos econômicos; abrigar valiosa diversidade cultural; produzir e consumir diferentes tipos de serviços; atrair e gerar muitas viagens; não coletar e tratar seletivamente o seu lixo, com exceção dos resíduos laboratoriais; não ter tratamento de esgoto; não ter qualquer prática de uso racional da água ou energia consumida; não ter planejamento e gestão da mobilidade, acessibilidade e transporte; ter uma parca estrutura de atendimento médico para a sua população; ter uma agenda cultural e de entretenimento tímida, e ainda influenciada por um calendário de “choppadas” e festas sem qualquer vinculação com características culturais marcantes da nossa sociedade.
Produzir e compartilhar conhecimento, formar cidadãos, formam, em essência, a atividade fim da UFRuralRJ, e para isto o governo federal disponibiliza toda uma estrutura física, humana e de conhecimento. Também se caracteriza por ser uma cidade com alta taxa de renovação da sua população, o que pode ser observado a cada período de entrada e saída de alunos de segundo-grau, graduação e pós-graduação. Parte da população reside nos alojamentos, outra parte reside em Seropédica, fora do Campus. Uma outra parte vem para a UFRuralRJ e volta para casa. É uma cidade que tem sua dinâmica informada pelos horários de funcionamento das suas atividades, estes bem diferentes dos horários das atividades básicas dos moradores fixos de Seropédica. Muitos cursos já tem aula no período noturno, a biblioteca funciona até meia-noite. As festas de cursos da UFRuralRJ, a cada ano mais numerosa, também ocorrem em Seropédica, em clubes ou repúblicas, e atravessam a madrugada. Nos últimos anos, o número de cursos de graduação aqui sediados aumentou para 40. Apenas para análise, se cada curso fizesse por semestre a sua choppada, o calendário teria uma festa a cada 2,5 dias úteis. Em termos práticos, sabe-se que nem todos os cursos tem sua festa e que outros tem mais de duas.
Seropédica, por sua vez, tem na administração pública e nos alugueis suas principais atividades. É uma cidade que cresce sem qualquer instrumento que oriente esteticamente, funcionalmente e sustentavelmente a ocupação do seu solo, o que faz com que a beleza da UFRuralRJ contraste radicalmente com a poluição visual observada em seus bairros. Não há qualquer planejamento ou controle urbano que racionalize trânsito, atividades econômicas, hábitos e costumes, o que torna a cidade barulhenta, caótica. É uma cidade alçada por vias com pedágio ou repletas de quebra-molas e ocupações a beira da estrada. Logo, o padrão de deslocamento possível ou é caro ou é sofrível e demorado. É uma cidade que cresce apenas a beira da Rodovia Rio-São Paulo, o que, entre outros problemas, faz com que seus bairros sejam manchas urbanas isoladas, sem vias qualificadas e seguras para integração intrabairro e interbairro. Por esta razão, para poder desenvolver suas atividades básicas, diariamente a população de Seropédica expõe-se aos riscos de atravessar a rodovia. Não há transporte público regulamentado e que atenda as necessidades e características físicas e humanas ali encontradas. O transporte na cidade é feito em vans, kombis e motos, em condições críticas de organização e funcionamento.
Os números relativos a cidade são escassos tanto quantitativamente quanto qualitativamente. O atendimento médico a população é precário, tanto na rede pública quanto na rede particular. O maior empregador é a prefeitura. Também aparecem na geração de emprego: empresa de ônibus, um fabricante de alimento, um fabricante de sacos plásticos, um supermercado, uma concessionária de rodovias e a UFRuralRJ. Seropédica não coleta e trata seletivamente o seu lixo; não tem boa estrutura de coleta e tratamento de esgoto; não tem qualquer prática de usu racional da água e energia consumida (a água de Seropédica é suja, apesar do fornecimento da Cedae); não tem planejamento ou gestão da mobilidade, acessibilidade e transporte; praticamente não tem calçada, expondo os transeuntes ao trânsito de automóveis e motos; tem uma agenda cultural e de entretenimento empobrecida, que se resume a festas promovidas pela prefeitura e igrejas.
Cidadãos diferentes expostos a mesma sorte
Enfim, como em todo tecido social, Seropédica e UFRuralRJ demandam serviços de transporte, hospedagem, saúde, alimentação, lixo, saneamento básico, segurança e entretenimento dignos. A UFRuralRJ apresenta alguma vantagem, mas as semelhanças iguala as duas populações a uma mesma sorte, o que deveria ser suficiente para que a população da UFRuralRJ tomasse a iniciativa de estimular que a organização repense e reveja a agenda do encontro entre as duas cidades. Uma vez na UFRuralRJ ou deslocando para ela, qualquer pessoa dessa comunidade está exposta a mesma sorte que assola o morador fixo de Seropédica. Se precisar de serviço de saúde, uma emergência médica que seja, um “cidadão da UFRuralRJ” estará exposto ao mesmo ocaso, ao mesmo suplício, ou seja, a um dos piores índices de saúde do Rio de Janeiro. Ao se deslocar pelas vias que ligam Seropédica está-se exposto aos mesmos riscos de acidentes. Ao residir em Seropédica, enfrentando a desordem e caos urbano, qualquer membro da UFRuralRJ é uma vítima, e, ao mesmo tempo, culpado, se não observar e realizar uma mudança significativa na maneira como desenvolve suas atividades e cria e honra os limites que demarcam e respondem pela qualidade de vida.
Diferentes facetas, além da econômica, podem ser vistas no encontro entre as duas cidades. A UFRuralRJ influência o aumento do trânsito local, pois parte da sua população começa a usar de maneira contumaz carros e motos. Outra utiliza bicicleta ou simplesmente exerce a marcha a pé. Ela tem impacto sobre o mercado de transporte, pois boa parte da população da UFRuralRJ usa com freqüência o transporte alternativo. Uma das influências mais marcantes está no encontro dos estilos de vida e padrão de desenvolvimento de atividades totalmente diferentes dos alunos e dos moradores fixos de Seropédica. A atividade noturna dos alunos é intensa, baseada em festas que por vezes ultrapassam as horas da madrugada, enquanto a vida da maioria dos moradores de Seropédica começa na madrugada, e para trabalho. Muitas das vezes festas barulhentas, desconsiderando que os vizinhos precisam de paz e conforto para começar um dia que, para boa parte deles, implica em horas de deslocamentos dentro dos ônibus da Real Rio.
No que diz respeito aos alugueis, caminha-se para uma situação extremamente delicada. Em função do crescimento do número de cursos da UFRuralRJ e do fato de Seropédica só ter o mínimo de condições para se habitar à beira da estrada, os alugueis aumentaram absurdamente. Preferida pela população da UFRuralRJ, os valores de alugueis praticados nesta área da cidade praticamente inviabilizam que um típico residente fixo de Seropédica possa ali viver: a renda média é baixa. Muitos colocam suas residências disponíveis para aluguel, aproveitando os bons preços. Resta aos moradores ocupar outras partes da cidade, infelizmente as que apresentam as mínimas condições para se levar uma vida de qualidade.
Por uma nova agenda para esse encontro
Como visto, o serviço que a foto do jornal oferece é outro. Ela é uma evidência importante para que comece-se, urgentemente, a analisar de maneira mais detida e estruturada o padrão de influência que a UFRuralRJ exerce e pode exercer sobre a realidade de Seropédica e do seu entorno. É a abertura de uma nova agenda para esse encontro. É a mudança da lente, a melhoria da acuidade visual, o aumento da empatia, a disponibilização para a interação. É a produção de novas e melhores fotos desse encontro.
Muito ainda há para ser feito no plano básico, como o de sensibilizar e conscientizar os moradores dessas duas cidades sobre a realidade do outro, para que se aprenda ver e respeitar os limites que demarcam e respondem pela qualidade de vida. Existem várias oportunidades para abrir novas janelas e portas de interação entre as duas cidades, principalmente a partir dos conhecimentos desenvolvidos nos cursos e institutos. Quanto conhecimento sobre ervas medicinais, plantas, árvores, alimentos, animais e processos tem-se disponível na UFRuralRJ para ser aplicado objetivamente em Seropédica? São muitas as janelas e portas que levariam a um maior intercâmbio cultural e de compartilhamento de conhecimentos e experiências. Algo rico, denso e de muito valor e peso não apenas no currículo vitae, mas na memória da alma e da pele, como o faz um Projeto Rondon.
Figurativamente falando, o que aconteceria se abríssemos uma nova entrada da UFRuralRJ pela rua 11, a rua da Delegacia? Atualmente a UFRuralRJ está voltada para a Rodovia, para a Pesagro. Com esta nova entrada, ela se voltaria para dentro de Seropédica, não para a beira da estrada. Parte daqueles que usam diariamente a rodovia teriam uma nova opção para se apropriar do gracioso espaço da UFRuralRJ e para desenvolver suas atividades. As mudanças no fluxo de pessoas tem potencial para influenciar o deslocamento de atividades da beira da estrada para dentro do bairro ou gerar novas atividades, o que levaria a uma transformação na paisagem do bairro, na experiência de cidade. É para imaginar, ousar, sair do lugar comum, enfim, criar uma nova agenda.