A crônica de uma cidade é um retrato da vida da cidade. É um instantâneo que revela a dinâmica do seu cotidiano e que, numa leitura mais ampla, revela os movimentos que simbolizam suas ambições, potenciais, vocações ou possibilidades. Os vários retratos tirados, somados, alimentam lendas e o folclore; revelam um mapa, dinamicamente transformado, que explica o destino da cidade e sua inserção no mundo. As crônicas são marcadas pelas facetas do dia-a-dia, por seus contextos, históricos ou pontuais, e pela trajetória das suas personagens. A vida de uma cidade, seu futuro, sua sorte, pode resultar de ações e projetos que explorem suas vocações e potenciais ou de ações e projetos que a conferem vocações. Por exemplo, o plano siderúrgico brasileiro deu a Volta Redonda a vocação para o metal-mecânico. Por sua vez, a região litorânea tem o potencial turístico, algo importante para criar a vocação turística.
Da trajetória de personagens, cristalizam-se os homens comuns e emergem heróis e vilões, figuras que, sozinhas ou acompanhadas, são decisivas para a história da cidade. Apostas, feitos, recursos aportados, ideais, valores, traços comportamentais e de caráter, misturam-se numa complexa interação para gerar os desdobramentos que sinalizam o possível amanhã e que constantemente redesenham o mapa. A história não para: surgem os registros, os relatos, suas interpretações e reinterpretações, enfim, todo material essencial que alimenta as crônicas.
A história de Seropédica ─ curta enquanto cidade, longa enquanto distrito de Itaguaí─ tem suas crônicas apontando para dois momentos, e são marcadas pela natureza dos movimentos e dos mapas que aparecem. Em um primeiro momento, de relatos históricos, abundantes, e de alguns registros, escassos, emergem crônicas de uma cidade vivida por pessoas que, oriundas de outro lugar, ali escolheram (ou não tinham escolha) ficar para construir suas vidas, e por ideais alimentados e compartilhados de emancipação que levaria o distrito a condição de cidade da qual se poderia orgulhar. Estas crônicas revelam um mapa das ambições de uma sociedade que, com o tempo, foi inquietando-se com a condição de distrito, mobilizando-se com intensidade para transformar sua sorte.
Ambições estas simbolizadas por movimentos de enraizamento de recursos (investimentos), de cultivo de idéias modernizantes (comitês de especialistas) a espera de projetos que fariam germinar e crescer, reproduzir, transformar, prosperar. Tudo a partir de uma lógica escorada na posse de uma generosa extensão de terra, de uma grande universidade e de uma localização estratégica. A cidade pintada na crônica diária revela um excelente potencial econômico a ser explorado, materializado pela proximidade com grandes centros de conhecimento e de consumo, conformando um mapa repleto de vias que levam e trazem o desenvolvimento, garantindo uma boa inserção “no mundo” para a cidade.
Com o tempo, essa realidade muda e a característica marcante da crônica de Seropédica é a apatia de uma cidade que simplesmente para e observa o vai e vem de um mundo em constante movimento. Não é a crônica de uma cidade que é destino ou partida para personagens cujo cotidiano, iniciativas, sonhos, trajetórias e feitos rendem histórias fantásticas, escritas por elas mesmas. Cidade aonde pessoas querem estabelecer raízes, semear e cultivar novas idéias modernizantes, e aonde alguns empreendedores aportariam seus recursos em projetos capazes de criar novas realidades positivas. Nem é uma cidade para onde pessoas se dirigem para conhecer, entreter, envolver ou explorar as coisas boas ali estabelecidas por seus personagens e positivamente transformadas pelo tempo. É a crônica de uma sociedade imobilizada, a beira de uma estrada, observando o tempo passar.
A atual crônica de Seropédica é a de uma cidade de passagem; de um trecho do caminho de viajantes; de um episódio ou temporada na vida de pessoas que por ali passaram, e que, além do consumo necessário para sobreviver e do aluguel que pagaram, pouco fizeram ou encontraram. É a crônica de uma cidade cujos moradores ficam observando pessoas de fora escreverem, ao seu jeito e ritmo, a história da sua cidade; é a crônica daqueles que para ter uma vida melhor e mais digna precisam sair para se qualificar e obter ocupação mais atraente; é a crônica da cidade que tem uma grande universidade, mas com ela não se integra ou se deixa integrar. A universidade, que movimenta inúmeros recursos, conhecimentos e pessoas qualificadas, deles pouco consegue aproveitar para transformar a realidade da cidade. Nesta crônica, o conhecimento, e seus atores, apenas passam por Seropédica.
É a crônica da cidade que, sem qualquer planejamento ou alguma intervenção estruturada do seu poder público, cresce apenas numa faixa do território, a beira da rodovia. A beira da estrada, e em função dela, emergem as facetas do dia-a-dia, constroem-se contextos, históricos ou pontuais. Ali surgem personagens, dão-se os fatos, estabelecem-se trocas e laços. Ali ficam os pontos de ônibus, bancos, lojas, bares, praças e serviços e é para ali que as pessoas se deslocam diariamente, deixando para traz as esvaziadas ruas das suas comunidades, que não tem nada para entretê-las, oferecer ou que as faça sentir que pertencem aquele bairro ou comunidade. Ali se constrói todos elementos que conferem uma identidade para a cidade.
A beira de uma rodovia, resolvendo seus problemas, trabalhando ou se entretendo, os cidadãos de Seropédica observam, dia após dia, o mundo passar. Passam carros, motos e caminhões, carregados de materiais, produtos e pessoas que simbolizam um mundo abundante em conhecimento, produção e consumo. Mundo do qual os moradores da cidade, com raras exceções, fazem parte ou dele conseguem aproveitar. De domingo a domingo fica-se a beira da estrada assistindo ─ conformado ou deslumbrado ou assustado ─ ao vai e vem de tecnologias, diferentes a cada ano, simbolizando a história de um país e de um mundo em crescente riqueza e, logicamente, em movimento. Passagem que deixa poluição ambiental, sonora e incidentes de um convívio, sem segurança ou proteção alguma, entre os cidadãos e um tráfego cada vez mais crescente e hostil.
Na história da cidade crescem os relatos e registros de famílias que perderam entes em atropelamentos e demais acidentes, ou dos entes que saíram para viver melhor. Algumas pessoas contam histórias sobre caminhões que tombaram e cargas que foram saqueadas; sobre vítimas que viram neste ou naquele acidente enquanto caminhavam pela ciclovia. As pessoas falam dos longos engarrafamentos, esboçam, com poucas e rápidas palavras, a condição de profunda impotência que lhe é conferido pela maneira de governar e pensar essa cidade. Outras coisas são facilmente observadas. Assiste-se ao crescimento desordenado da população universitária e do aumento do tráfego interno de carros, mototaxis e vans. Não se tem sinalização, calçadas, ou a quem recorrer diante o inesperado. Assiste-se aos trens passarem, levando e trazendo riquezas, conhecimentos aplicados, e que param apenas por causa dos sinais fechados e dos acidentes. Os trens não param para abastecer empresas que ali estão, geram empregos e riquezas, a partir de conhecimentos desenvolvidos na universidade ou ali enraizados. Em breve Seropédica terá o arco-rodoviário passando pelo seu território, e dele poderá não usufruir, pois a cidade corre o risco de não receber uma alça rodoviária para nele entrar ou sair.
Dentro em breve, desse mundo de riqueza que se observa passar, em vias cada vez mais numerosas, a crônica de Seropédica registrará, e com grande freqüência, os fatos oriundos de um vai e vem que materializa o ocaso da sonhada cidade próspera. Será a crônica do “ir” de areia bruta e barata, extraída de seus imensos e poluidores areais. A areia inicia o processo de construção de um mundo rico que não para, como a Barra da Tijuca. O mundo cresce enquanto Seropédica se diminui, se esburaca. Será a crônica do “vir” do lixo do Rio de Janeiro, da Cidade Maravilhosa, oásis do mundo do consumo, que nunca para de crescer, de receber turistas, e de produzir lixo.
A atual crônica de Seropédica é a crônica da cidade imobilizada que vê o “mundo” passar pelas suas vias; que vê o mundo se reinventar em seu conhecimento, riqueza e poder; que vê o mundo se esvair em consumo; e que no mundo se insere na impotente e demiritória condição de sua lixeira.
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